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Vidro

Vidro

A crença no extraordinário é questionada no capitulo final da saga iniciada em 2000

Matheus Fiore - 13 de janeiro de 2019

M. Night Shyamalan parece acreditar que os mitos que acompanham as civilizações ao longo da trajetória humana não são apenas base para a construção das sociedades, mas algo mais. Em “Corpo Fechado”, de 2000, Elijah Price (Samuel L. Jackson) acredita que as histórias em quadrinhos são, assim como outras formas de arte foram no passado, a forma de registrar os mitos da sociedade contemporânea. Para Shyamalan, porém, esses mitos não apenas criam sociedades, mas respondem aos seus anseios. É como se, ao acreditar nesses mitos, os personagens das obras do cineasta indiano pudessem se tornar parte deles; como se o poder da crença pudesse ser basilar para uma transformação na própria realidade, materializando o fantástico.

No próprio “Corpo Fechado”, a crença de Elijah (ou Senhor Vidro) na criação de heróis e vilões resulta na origem dos poderes do segurança David Dunn (Bruce Willis), que, como o título original, “Unbreakable”, sugere, tem um corpo impenetrável. Já em “Fragmentado”, de 2016, Shyamalan retorna ao poder da crença como elemento transformador para contar a a história de um personagem dividido entre 24 personalidades, todas habitando o corpo de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy). Essas personalidades acreditam que surgirá uma bestial 25ª, que extrapolará os limites físicos do corpo e os libertará. É, mais uma vez, a crença de um personagem – ou, no caso, 24 – como elemento que altera essa realidade.

Chegamos, então, a “Vidro”, obra que une os caminhos dos personagens de “Corpo Fechado” e “Fragmentado”. No filme, David, Elijah e Kevin são capturados por um misterioso grupo liderado por Ellie Staple (Sarah Paulson). O grupo mantém o trio trancafiado em um centro psiquiátrico e tenta realizar uma série de pesquisas para provar que os personagens não são seres com poderes, mas com sérios transtornos mentais. Shyamalan, portanto, traz de volta personagens que transcenderam a realidade através da força da própria crença, e os coloca em um cenário que questiona e tenta subjugar essa crença.

O recorte escolhido por Shyamalan é, mais uma vez, o dos quadrinhos, como foi feito em “Corpo Fechado”. Desde quadros dentro de quadros, fazendo com que o enquadramento pareça uma página de gibi cheia de divisórias e balões internos, até uma câmera que constantemente se movimenta de forma panorâmica da esquerda para a direita, como se lêssemos uma página, há muito na construção visual que remete diretamente ao formato dos gibis. É como se a existência daqueles personagens superpoderosos transformasse o mundo deles em um mundo em quadrinhos, algo que fica nítido também ao observarmos a estrutura do roteiro, que segue uma fórmula muito parecida com a das narrativas clássicas da Marvel ou da DC Comics.

Nessa relação gibi-cinema, muitos se queixarão dos diálogos expositivos e cenas verborrágicas, mas há de se ressaltar que tal característica não se dá por uma limitação artística de Shyamalan ou preguiça no desenvolvimento do roteiro. Na verdade, tal verborragia e exposição são elementos muito comuns nas histórias clássicas de heróis, principalmente quando um vilão está prestes a explicar um plano mirabolante – há algo mais “quadrinhos” do que o Coringa explicar todo o seu plano para o Batman antes de executá-lo, por exemplo?

O grande diferencial de “Vidro” em relação a “Corpo Fechado”, porém, é que aqui Shyamalan constrói toda a história em prol da consagração do vilão, Senhor Vidro (Samuel L. Jackson). Mesmo que o Senhor Vidro já estivesse presente e tivesse participação ativa no desenvolvimento de “Corpo Fechado”, na obra de 2000, o personagem que ocupava o centro da narrativa com sua trajetória pessoal era o próprio David Dunn – afinal, o filme alterna entre o estudo dos quadrinhos e o drama da família que precisa lamber as feridas e reatar seus laços.

É interessante observar que o uso do cinema para defender essa relação humana com a crença não é uma novidade para Shyamalan. O criticado “A Dama na Água”, de 2006, parte do mesmo princípio, chegando a falar diretamente sobre a relação do cineasta com público e crítica, e trazendo essa fé inabalável como um elemento capaz de transformar a diegese do filme. O mesmo acontece aqui, mas, desta vez, há um inimigo mais materializado e coeso, representado pela organização que tenta convencer o trio protagonista de que seus poderes não existem.

Também é interessante que, de forma discreta, Shyamalan cimente a ideia de que quem está no comando intelectual e visual do filme é o Senhor Vidro. O comando intelectual se faz presente por meio dos comentários do próprio Vidro, que vez ou outra comenta sobre a estrutura da obra, comparando-a com quadrinhos. Já sobre o visual, é algo mais sutil: a roupa utilizada no centro psiquiátrico pela principal criação de Elijah, David Dunn tem detalhes em um tom claro de roxo, cor que é, desde “Corpo Fechado”, a marca do Senhor Vidro, algo que pode simbolizar o poder que Elijah Price exerce sobre sua criação – mesmo que talvez David não saiba disso.

Aliás, o roxo também está em abundância na loja de quadrinhos do filme. É como se o Senhor Vidro não tivesse escolhido o roxo, mas o herdado por deliberadamente reviver a mitologia dos quadrinhos. Ele é não só um vilão, mas, de certa forma, é um narrador, um observador, que tenta expor como o mito não só reflete como influencia no universo em que Shyamalan opera. E, se o Senhor Vidro é quem guia o espetáculo, nada poderia ser mais coerente do que um clímax que rejeita a ação – afinal, o protagonista é o personagem mais frágil do filme – e aposta em uma resolução pelo intelecto.

“Vidro” abraça o cosmo iniciado em 2000 com “Corpo Fechado”, e coloca como central o elemento que permitiu o surgimento dos personagens principais desse cosmo: a crença. A novidade é o contraponto ao poder dessa crença, que é a figura de Staples, personagem que questiona os superseres e tenta enquadrá-los de volta num modelo mais realista de mundo. Para o Senhor Vidro, porém, a vitória não viria desse embate, mas do legado deixado por ele. Fazer com que outras pessoas acreditem na força da mitologia, na força dos quadrinhos, é o suficiente para que o Senhor Vidro e seus feitos alcancem a eternidade, mesmo que nunca mais vejamos esses personagens no cinema.

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