Deserto Particular

Deserto Particular

Redescobrindo o afeto

Matheus Fiore - 25 de novembro de 2021

O contexto do lançamento de um filme sempre é importante para avaliarmos a obra. Deserto Particular, de Aly Muritiba, chega em um dos momentos de maior divisão política da história do Brasil pós-ditadura militar. Apesar de não ser um filme de bandeiras ou panfletos, Deserto é sim um longa-metragem que se situa nesse Brasil dividido e propõe um olhar um pouco mais complexo para os indivíduos. É um filme cujos personagens descobrem suas próximas complexidades através do afeto para, então, poderem externar seus sentimentos.

Tentarei evitar spoilers, por mais que seja difícil ao falar de uma obra que introduz novos elementos que ressignificam sua narrativa repetidas vezes, mas em suma, o que temos é: um policial, que recentemente se envolveu em um caso que foi parar nas reportagens televisivas, tem uma namorada pela internet, que parou de responder assim que viu seu companheiro nos noticiários. Consumido pela ansiedade e pelo sentimento que nutriu por Sara, Daniel decide largar tudo e procurar o amor no norte do país.

A figura do policial é costumeiramente atrelada ao bolsonarismo e à violência – e não é pra menos, temos a polícia mais violenta do planeta. Aly Muritiba constrói seu drama justamente a partir da exploração das nuances desse personagem. Por mais que tenha, sim, seu histórico de violência (o qual sabemos que existe mas nunca acessamos, já que o foco aqui é a sensibilidade despertada pelo amor), o Daniel que está em tela é um sujeito sentimental, complexo, com dores e medos como qualquer humano normal. Vai além do estereótipo de figura violenta que poderíamos esperar e que vemos tantas vezes no cinema.

Retomando o que menciono sobre o filme ressignificar elementos e ideias ao longo da projeção, é interessante como essas novidades que surgem em tela sempre tornam a narrativa mais complexa do que parece. É como se Aly Muritiba propusesse não só uma desconstrução de seu personagem durante o processo de humanização, mas também um afago para um Brasil dividido. Deserto Particular é um filme de personagens que são isolados da sociedade por terem seus sentimentos sufocados pelo mundo externo, mas que são capazes de encontrar e extravasar esse amor nesse mesmo mundo. Não chega a ser um resgate ou uma mudança na nação, mas talvez uma sinalização de que não só as pessoas estão conseguindo encontrar suas próprias nuances, como estão sendo capazes de externá-las sem medo de julgamentos.

Por mais que a conclusão não seja o final feliz ideal que todos gostaríamos, é de se louvar a coragem de Aly Muritiba de ser fiel ao que propõe. Se Deserto Particular apresenta um mergulho no Brasil com sua diversidade, suas contradições e suas diferenças, dar apenas um gostinho do que pode vir a ser um país guiado com amor e pelo amor pode soar insuficiente, mas é bastante coerente com que vemos. É como se Deserto Particular tivesse assimilado que passamos por um inferno e que a luz no fim do túnel ainda está distante, mas já dentro do nosso campo de visão. Devagarinho, já vislumbramos o caminho para o resgate do Brasil, para sermos um país mais humano, mais rico e mais complexo.


Esse texto faz parte da nossa cobertura para o 25º Cine PE. Acompanhe a cobertura completa aqui.

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