Holy Spider

Holy Spider

O peso do contexto

Wallace Andrioli - 28 de outubro de 2022

Holy Spider, de Ali Abbasi, é um filme de serial killer relativamente convencional, que acompanha, paralelamente, a investigação conduzida por uma jornalista a respeito dos assassinatos cometidos pela figura alcunhada “Spider Killer” e o próprio criminoso espreitando e escolhendo suas vítimas. Abbasi também se dedica, e aqui está um aspecto interessante, a mostrar o cotidiano familiar de Saeed (Mehdi Bajestani), o assassino, revelando uma dimensão amorosa inusitada com seus filhos e esposa. Bajestani, aliás, é muito competente na construção desse sujeito repulsivo, ao mesmo tempo pai e marido amoroso e responsável por aos de extrema violência.

Essa compreensão de que as pessoas não são necessariamente uma coisa ou outra, mas muitas vezes uma coisa e outra, dá força a Holy Spider, tirando-o do lugar comum. Mas o que realmente torna o filme mais interessante que a média do gênero é a maneira como sua narrativa é integrada a características específicas da sociedade iraniana. Sim, essa é a história de um serial killer atuante na cidade sagrada de Mashhad, no início dos anos 2000, que matava prostitutas, vistas por ele como símbolos de degradação moral a serem destruídos.

Essa “cor local” é importante para trazer à tona a enorme misoginia que atravessa os valores religiosos e culturais do Irã atual e o quanto ela é também responsável pelos crimes de Saeed. Se não se trata de nenhuma grande revelação, afinal diretores iranianos como Jafar Panahi vêm há anos abordando o tema da exclusão das mulheres da cidadania no país, vê-la em ação num tipo de narrativa tão corriqueira no cinema ocidental gera um acréscimo de aflição nos momentos mais extremos da investigação de Rahimi (Zar Amir-Ebrahimi).

Holy Spider funciona bem como thriller, ainda que os momentos dedicados a Saeed sejam, em geral, melhores que os protagonizados pela jornalista, cujo trabalho é acompanhado com certa morosidade por Abbasi. Resta a sensação de que, no fim das contas, o que mais interessa ao diretor e corroteirista é compreender o comportamento do assassino em sua vinculação intrínseca com valores embasam o regime político vigente no Irã desde a Revolução de 1979. E ele faz isso com competência.

No entanto, em seu terço final, Holy Spider ganha uma nova cara, após a conclusão de uma etapa importante da história. O ritmo se torna mais arrastado e o filme falha ao tentar lidar com temas como o estrelato repentino do serial killer e a maneira como sua família reage à nova situação. Ainda assim, há no epílogo um movimento interessante de evitar a caricatura na caracterização do sistema de justiça iraniano, apesar da crítica aberta ao regime dos Aiatolás seguir sendo feita em alta intensidade. É criativa a maneira como Abbasi utiliza o componente farsesco nesses últimos momentos de Holy Spider, levando a uma tensão a partir da dúvida sobre quem está de fato sendo enganado. E é justamente pela eficácia na representação das mazelas culturais e políticas do Irã ao longo da narrativa que a incerteza instalada nesse final se mostra assustadoramente verossímil.

Texto originalmente escrito para nossa cobertura do Festival do Rio 2022. Acompanhe aqui.

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