Não! Não Olhe!

Não! Não Olhe!

A arte da mise-en-scène

Wallace Andrioli - 13 de setembro de 2022

Num texto já clássico, o teórico Tom Gunning falou em “cinema de atrações” para vincular o primeiro cinema, aquele realizado principalmente pelos irmãos Lumière, ao blockbuster hollywoodiano, a partir de uma lógica de submissão de impulsos narrativos ao espetáculo puro da imagem em movimento. O prazer e o impacto advindos do visionamento da chegada de um trem a uma estação francesa, em 1895, encontrariam, para Gunning, equivalência na sensação de, por exemplo, se deparar e se maravilhar, junto aos personagens de Jurassic Park (1993), com um imenso dinossauro redivivo pela tecnologia digital.

Em Não! Não Olhe!, Jordan Peele compartilha até certo ponto do interesse por esse tipo de aproximação. Seu retorno aqui é ao pré-cinema, às célebres imagens registradas pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridge, em 1878, de um cavalo (montado por um jóquei) em plena corrida, com o objetivo de provar que suas quatro patas saíam do solo ao mesmo tempo. O olhar humano, por meio da tecnologia, dominando a natureza. Aparece ainda nesse novo filme de Peele o parque de diversões como cenário, o que já acontecia em Nós (2019), feiras de variedades que foram o primeiro espaço de exibição do próprio cinema e cujo funcionamento obedece ao mesmo fundamento atrativo referido por Gunning. E o diretor vem de fato se tornando cada vez melhor na condução de grandes momentos de espetáculo, que valem por si só, quase se desprendendo do fluxo narrativo. O longo epílogo de Não! Não Olhe! é o ápice de sua carreira nesse sentido.

É verdade que há no filme uma outra questão muito cara a Peele: a busca por repensar a história do cinema, reorganizar seus protagonismos, manifesta principalmente na referência ao jóquei negro fotografado por Muybridge (e esquecido por aqueles que olharam repetidamente para essas imagens ao longo de mais de um século que se seguiu). O diretor retorna ao passado da arte a partir da explicitação dessas lacunas e se coloca objetivamente como um continuador do que Spike Lee, por exemplo, vem fazendo há décadas: dar a ver o racismo estruturante de um meio acostumado a ser abordado de forma laudatória e linear.

Essas tentativas de construção de uma contra-história do cinema americano por dentro do próprio sistema de produção tem, sem dúvidas, limites. Peele surge num momento de muito mais abertura à autocrítica, inclusive por parte de Hollywood, do que aquele em que Lee iniciou sua carreira, o que carrega ambiguidades e contradições. É questionável a real dimensão de contestação e a potência política da obra do jovem realizador, que tende a ser mais facilmente aceita pelo mainstream hollywoodiano não só em decorrência de um certo zeitgeist, mas também por sua filiação ao cinema de gênero.

Por isso, o que existe de mais interessante em Não! Não Olhe! é mesmo seu pensamento sobre a criação de imagens. Peele aborda diretamente o tema das tentativas humanas de domesticar animais selvagens, já anunciado na referência aos experimentos de Muybridge e posteriormente aprofundado na história do chimpanzé que surta num set de filmagens, no trabalho cuidadoso de OJ (Daniel Kaluuya) com os cavalos do rancho de sua família e, claro, na forma como o protagonista aplica essa experiência prévia na lida com a ameaça principal do enredo. Peele está também falando de seu próprio ofício, associando a boa mise-en-scène a componentes como a distância justa em relação ao que é filmado e a duração certa da tomada, algo que nem mesmo o cineasta profissional interpretado por Michael Wincott compreende totalmente, já que acaba derrotado pela percepção equivocada de que a qualidade das imagens capturadas do mundo advém necessariamente do enquadramento e iluminação perfeitos e de uma proximidade excessiva do objeto.

Nesse sentido, Peele apresenta OJ e sua irmã Emerald (Keke Palmer) como os verdadeiros exemplos de metteurs en scène na diegese de Não! Não Olhe!. Pacientes e laboriosos, os dois buscam sempre se manter a uma distância segura da ameaça e manuseiam brilhantemente o tempo não só para derrotá-la, mas também para torná-la imagem. Algo bem parecido com o que faz o próprio diretor ao longo do filme, absolutamente seguro de suas escolhas e exercendo um controle efetivo sobre o que, como e quando mostrar. Não! Não Olhe! é uma espécie de Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) de Peele, mas menos pela semelhança temática e mais por se tratar, como a obra-prima de Spielberg, de uma impressionante demonstração de domínio sobre todos os elementos que fazem o cinema.

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