O Mágico e o Delegado (1983)

O Mágico e o Delegado (1983)

Modernidade em embate com autoridade

Igor Nolasco - 5 de novembro de 2020

Em edição que estende seu escopo para a internet, na esteira dos demais eventos que migraram para tal formato em decorrência da pandemia de COVID-19, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2020 conta com uma programação diversa e acessível a todo o país. Dentre os filmes brasileiros figura uma retrospectiva da obra de Fernando Coni Campos (1933-1988), que abre com “O Mágico e o Delegado”, vencedor do Candango de Melhor Filme no Festival de Brasília de 1983 e certamente o trabalho mais celebrado na obra do diretor precocemente falecido.

O filme parte de uma situação proverbial, transposta anterior e posteriormente para o cinema em todas as maneiras possíveis e inimagináveis: o forasteiro que chega em uma pequena comunidade interiorana, a tumultua com suas idiossincrasias modernas e visões que entram em choque com os dogmas ali pré-estabelecidos e fazem com que os habitantes mais tradicionais do local, encabeçados pelos que mantém a lei e a ordem, reajam tiranicamente ante sua presença. O mágico e o delegado fazem as vias dessas figuras arquetípicas, encarnadas com doses cavalares de carisma (se o mágico é o rebelde posto em tela para conquistar o espectador, o delegado, com seus intencionais cacoetes de vilão de matinê, surge como uma figura quasicartunesca que funciona muito bem).

Coni Campos, cineasta de versatilidade impressionante (basta constatar o quão diferentes um do outro são “O Mágico e o Delegado”, “Viagem ao Fim do Mundo” [1968] e “Um Homem e Sua Jaula” [1969]), se entrega a uma premissa relativamente simples, conseguindo através dela arquitetar um jogo de poder interessante entre os personagens titulares, tanto entre si quanto com figuras periféricas à narrativa que compõem a construção do pequeno universo criado pelo longa.

Alguns momentos mais bem humorados caem muito bem ao espírito construído pelo filme, sobretudo quando alicerçados no delegado de Lutero Luiz, no detento de Wilson Grey (genial, como de praxe) e, evidentemente, no mágico deliciosamente vivido por Nelson Xavier (sempre magnético, esteja em papéis de protagonismo ou fazendo pontas). A atmosfera, ao por ora transpirar essa leveza, não é exatamente a de um filme que adota o humor enquanto gênero, como, para dar um exemplo contemporâneo a “O Mágico e o Delegado”, os longas dirigidos por Hugo Carvana (nos quais Nelson Xavier também possui participações memoráveis). O filme em questão não é tão despojado, mas sabe alternar bem o tom de cada sequência. Sempre há, no fundo, um coração esperançoso. Mesmo nos momentos mais trágicos, quando chega à tragédia, Coni Campos consegue fazer com que os momentos amargos se intercalem com um colher dos cacos no chão e com o alvorecer de um novo dia.

Tematicamente falando, o longa se debruça com interesse em reflexões sobre como figuras de autoridade (aqui evidentemente simbolizadas pelo delegado), representantes da moral ilibada, estão elas mesmas suscetíveis a sucumbirem  às seduções dos alegres e vívidos porta-estandartes da modernidade. Os defensores da tradição, dos costumes, da postura bem-comportada podem acabar, na calada da noite, desejando ter a experiência de abrir mão da rigidez, de se aventurar. Aqui a sedução é não apenas ideológica, mas literal, como manifestado na figura da dançarina Paloma; esse embate resulta na belíssima sequência da dança que eventualmente se torna pombagira, emoldurada por uma luz vermelha – e nesse momento, como em tantos outros ao longo da projeção, a fotografia de Mário Carneiro mostra-se essencial na construção da atmosfera, obtendo êxito quando alinhada à montagem ágil e ao olhar deslumbrado e perspicaz de Coni Campos.

Na iniciativa louvável de resgatar a obra de um diretor que não figura de maneira tão recorrente nos debates relativos ao cinema brasileiro, a Mostra de São Paulo convida o espectador a conhecer obras de décadas, temáticas e linguagens diferentes. O que as une, naturalmente, é a visão fluida de Coni Campos, através da qual sempre possui algo a dizer. Que essa oportunidade, ao tornar seus filmes disponíveis legalmente inclusive para gerações que desconhecem seu trabalho, faça com que eles sejam mais vistos e se tornem tópico de mais debates. Para além das questões materiais, a memória e o debate são o que mantém o cinema vivo. Sobretudo o cinema brasileiro, que não conta, para isso, com a ovação mundial do cinema dos EUA ou da Europa ocidental. Para prevalecer, o cinema brasileiro depende da memória e do debate, ainda mais no que se refere a diretores menos badalados pelo imaginário lato sensu, como infelizmente ainda é o caso de Fernando Coni Campos.

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