O peso dos meus ossos: “Mundo Pet”, de Lourenço Mutarelli

O peso dos meus ossos: “Mundo Pet”, de Lourenço Mutarelli

Coletânea em cores de Lourenço Mutarelli traz seu processo artístico em estado bruto

João Pedro Faro - 23 de novembro de 2020

Lourenço Mutarelli é um nome recorrente em cenários improváveis. De funcionário em uma farmácia a empregado dos estúdios Maurício de Souza, seguindo para a carreira de autor nos quadrinhos, literatura, teatro e cinema, o paulistano coleciona títulos diversos e converge suas experimentações artísticas em uma obra que já data mais de três décadas de material. No final dos anos 90, enquanto desenhava os álbuns do personagem Diomedes (que viriam a se tornar a chamada Trilogia do Ponto), Mutarelli produziu uma série de pequenas histórias em quadrinhos para o site Cybercomix. Tempos depois, elas foram compiladas e impressas no encadernado Mundo Pet, de 2005, que agora é reeditado e reimpresso pela editora Comix Zone.

Um primeiro caminho possível para experienciar o que está contido em Mundo Pet é levar em conta o que não está: se o senso comum da obra de Mutarelli percorre sua obsessão pelo preto e branco e pelo preenchimento absoluto da página, sem permitir espaços vazios, a série de Mundo Pet é como um ponto declarado de discordância. Totalmente colorida e reimaginando a própria forma a cada história, a coletânea assembla diversas alternativas procedimentais (da aquarela à tinta, passando pela colagem e pela canetinha) que assimilam, para cada pequena história, uma linguagem própria. 

No conto de abertura, Estampa Forjada, os fatores experimentalmente gráficos já buscam alguma união com o texto. O embate inicial é com a prosa de Mutarelli, que é suficientemente densa e imagética por si só. Portanto, quando se faz presente em seus quadrinhos de forma mais integral (nesse caso, através de uma narração em primeira pessoa, onde discorre sobre uma determinada ocorrência do Alzheimer de sua vó), é costumaz que ocorra um descompasso entre a quantidade de texto e o reduzido número de quadros. O que poderia ser, em outros casos, uma barreira comum encontrada no mau quadrinho, onde a imagem e o quadro se tornam apenas vagas ilustrações de um texto maçante, Mutarelli transforma em possibilidade de criar uma sequência temporal, espacial e física dentro de um mesmo enquadramento. 

Os balões de fala se acumulam em uma única delimitação gráfica, então o tempo é comprimido, enquanto seus personagens parecem mudar de aparência sem terem saído do lugar. No quadro seguinte, o espaço é o mesmo, as pessoas são as mesmas, mas nada está da mesma forma como estava antes. O movimento sequencial se dá justamente pela reformulação da imagem de uma figura, não pela sua mudança em relação ao espaço, mas sim sua mudança física em relação ao quadro anterior. A inconstância das formas não surge de outros ângulos ou através de suas movimentações pelas páginas, há apenas uma deformidade constante, uma instabilidade mórfica em seus personagens. Ela é natural à passagem de quadros e se torna via de regra para que duas imagens, presas ao enquadramento, formulem uma sequência. O que denuncia a passagem do tempo é o número de vezes em que as deformidades se rearranjam de novas formas, e todos os personagens de Mutarelli têm como centro de seu conflito a dor e a agonia desse processo.

É a partir desse ideal que todas as histórias de Mundo Pet se formulam. Seja na aproximação absoluta desse processo de deformação e inconstância física, como em Meu Primeiro Amor, onde o contato de uma criança com uma imagem erótica possibilita percepções grotescas e íntimas das capacidades de seu próprio corpo, seja no enfrentamento entre tempos que impulsiona o desespero do presente, como em Morfologia, onde um homem encontra a si mesmo envelhecido e não se reconhece. Trata-se, afinal, de uma exploração da imagética cartunesca, pois são traçados corpos que expressam os desejos, pavores e obsessões de seus respectivos personagens, como se a massa cerebral de cada um constituísse, externalizada, as formas de sua existência. Do mesmo jeito que personagens cartunescos, de quadrinhos de herói ou de tirinhas de jornal, podem ter toda personalidade diretamente reconhecida pela simplicidade, objetividade e unidimensionalidade de seus traços, os personagens de Mutarelli são objetivamente apodrecidos, envelhecidos, tomados por uma incapacidade de adequação à qualquer outra realidade além do desespero. Seus seres esqueléticos sempre surgem como tomados pela derrota, com o peso de seus ossos os carregando contra uma tão impiedosa gravidade.  Não à toa, a figura que ilustra sua capa (e que surge nos cantos de alguns contos) é essa deformação viva, com os braços colados ao rosto e com um vazio gritante no lugar da cabeça, uma representação recorrente e significativa para compreender o estado de existência dos personagens de Mutarelli.

O motor do desespero é a memória. Ela é grande recorrência temática não só de Mundo Pet, mas também de toda a obra do autor. Mas o que é a memória, para Mutarelli? Ela é um baú de horrores feito de massa cinzenta, não apenas uma coleção de momentos passados, mas uma existência carnal, pulsante e mórbida, que sobrevive às custas dos horrores que é capaz de causar. A memória é uma presença maligna que se espalha pelos quadros através do físico, que cria e condena os corpos de seus personagens e marca o doloroso peso do nascimento. Duas histórias, que dialogam diretamente, expõe de forma precisa essas formulações: Eu acordava chorando, onde a infância é revisitada pelas recordações de um pesadelo recorrente e inesquecível, e onde a memória é viva mesmo em nossos cadáveres por existir em inscrições profundas de nossas carcaças, e Dor Ancestral, dedicada à mãe de Mutarelli, em que o autor redesenha fotografias de família e reconstrói as imagens fotográficas sem que qualquer personalidade ressoe sobre cada rosto, que existem apenas como borrões disformes. A única certeza, ao reaver as gravações do passado, é que ele existe como herança maldita, como doença hereditária que percorre e condena tudo aquilo que surgir de nossa carne.

Como nos filmes do cineasta Raúl Ruiz (que é citado posteriormente na história Destrudo), os espaços para Mutarelli em Mundo Pet existem como acumulações de fatores que coexistem, mesmo que pertençam a tempos diferentes ou realidades alternativas. Sendo todas as suas histórias criadas a partir do ponto de vista de um universo absolutamente internalizado, além do inconsciente, o que custa ao seu traço é conseguir concentrar a realidade e o delírio em um mesmo plano, pois seus personagens não conseguem diferenciar as duas coisas. Um sujeito médio, o funcionário de escritório em “A Ninguém É Dado Alegar Desconhecimento da Lei”, pode acabar vendo um filme de prisão na TV e terminar achando que ele mesmo se encontra em um confinamento impositivo, tendo a necessidade de escapar secretamente do local. Será que, antes do contato com a realidade fantasiosa, a prisão já existia ao redor do sujeito? Não importa, o que importa é que agora elas pertencem a uma mesma realidade, e a dor dessa realidade é mais real do que qualquer outra.

A memória contagia o pensamento, e acompanhamos o pensamento já contaminado pela dor do passado, gerando a alucinação presente que perpassa suas narrativas e que, por consequência, é tomada de uma energia desesperadora. Na história Dossiê Stick Note, desenhada em pequenos bilhetes amarelos de recado, Mutarelli reafirma esses fatores no experimento narrativo proposto. A fixação gráfica disso no presente, ou seja, a manufatura do quadrinho, acaba sendo o estágio final de um processo compartilhado entre os protagonistas das histórias e a própria forma que permite com que elas existam.

Por fim, não resta mais o que expressar em escritas e traços severamente destroçados para tornarem-se algo conjunto. O que há de tão potente na coletânea Mundo Pet se encontra nessa capacidade do Mutarelli em manufaturar universos decadentes a partir de composições formais, estéticas e narrativas que se entrelaçam grotescamente em uma idiossincrasia gráfica impiedosa. Nas palavras do soldado suicida que encerram o último quadrinho, Dói Story: “O verdadeiro inimigo vem de dentro, e nada, nem ninguém, pode segurá-lo”. Não é difícil dizer que é esse inimigo o responsável por toda a expressão, pois é da dor das próprias tripas que se externaliza qualquer história.

Topo ▲