O Samurai (1967)

O Samurai (1967)

Um assassino preso aos gestos e rituais

Michel Gutwilen - 12 de março de 2021

Se o plano inicial de um filme pode ser a síntese de toda a obra que virá a seguir, O Samurai pode ser um bom exemplo. Abre-se com uma citação, que diz não haver maior solidão que a do Samurai, com exceção de um tigre na floresta. Depois, o que se vê é um quarto. Suas paredes são cinzas, sua aparência indica o desgaste e não há muita mobília, com exceção do essencial. Dentro dele, há um pássaro preso em uma gaiola, no centro da imagem, cercado por duas janelas, e um homem deitado na cama, fumando um cigarro, na borda do plano cinematográfico, quase imperceptível. Portanto, o que se conclui é que o tema da (falta de) liberdade é central à narrativa, que se passa em um mundo minimalista e vazio, relegando, inclusive, o homem, enquanto indivíduo, a algo de menor importância. 

Solitário como um tigre na floresta e preso como um pássaro na gaiola. O diretor e roteirista Jean-Pierre Melville recorre de uma artilharia pesada de metáforas para definir seu protagonista, antes mesmo de que a audiência conheça ele. Tal escolha faz mais do que sentido, visto que, se tratando de uma história sobre a impossibilidade do livre arbítrio, o Homem não é livre para definir quem ele é. Não faria sentido conhecê-lo a partir dele mesmo, como por um diálogo, mas pela própria mise-en-scène organizada pelo diretor. Sua natureza, nesse caso, mais do que humana, é animalesca, pois, como se verá a seguir, Jeff Costello (Alain Delon) segue uma vida mecânica, de repetição de gestos e atos, preso a um ciclo.

Dito isso, O Samurai tem como mote central de sua mise-en-scène a mecanicidade dos gestos, que por sua vez reflete, tematicamente, a impossibilidade do livre arbítrio. Como essa figura anacrônica, um assassino do mundo moderno com espírito de samurai clássico, a vida do protagonista se resume à execução de seu trabalho, a única coisa que ele foi ensinado a fazer. Desse modo, tudo deve ser realizado da maneira mais perfeita possível e não há tempo para distrações. Há duas consequências dessa afirmação: 1) Se o trabalho é a essência da vida e nada mais importa, o Homem não é livre para escolher seu destino. 2) A perfeição só pode ser alcançada a partir da repetição exaustiva e de um meticuloso planejamento, levando o homem à uma espécie de mecanização que não permite erros. Afinal, como alguém que não reflete sobre suas próprias ações, despido de moralidade, apenas reproduzindo-as, se uma coisa estiver fora do lugar, tudo pode ir por água abaixo.  Logo, para Costello, o “meio” virou “fim” em si mesmo. O modo de cumprir seus contratos de assassinato se tornou sua vida. Sua vida se passa ciclicamente, pulando de uma morte para a outra, sendo todas uma variação do mesmo procedimento. Justamente por isso, Costello está preso, sendo refém de seu próprio modus operandi, de seus próprios gestos.

Então, perceptível é o fato de como Melville parece fascinado e dá tanta atenção aos momentos de preparação de Costello, com uma atenção ao seu vestuário (marcado pelo sobretudo e pelo chapéu), que constantemente é retirado e colocado pelo protagonista, sempre de maneira ritualística. Em um mundo sem significados e livre-arbítrio, o que sobra é viver em um ciclo daquilo que já se conhece. Neste sentido, a atuação de Alain Delon é essencial a ideia de mise-en-scène do diretor. Suas feições são planas e duras, escondendo os sentimentos (tal como em Bresson), indicando um ser humano completamente alheio ao sentimentalismo. Foge-se ao máximo da ‘interpretação’, de modo que Alain Delon pareça menos um humano que reage ao mundo, mas apenas um ‘corpo’, enquanto matéria, que age mecanicamente e calculadamente. 

No entanto, o grande ponto de virada de O Samurai se encontra na quebra desse ciclo por parte de Costello, ou seja, no ganho da autoconsciência do “eu”, enquanto ser autônomo, e, consequentemente, livre-arbítrio. A grande causa dessa mudança é proveniente do encontro do protagonista com a enigmática Valérie (Cathy Rosier), que decidiu não entregá-lo para a polícia. Obviamente, isso fascina aquele homem, pois envolve uma espécie de escolha que ele nunca fizera, como uma demonstração de compaixão e humanidade, ainda que por motivações nebulosas. Assim, em um primeiro momento do terceiro ato, já é possível identificar sua tendência à liberdade dos gestos programados, com a improvisação na sequência de perseguição do metrô, quando ele precisa despistar seus seguidores. 

Porém, de resto, todo o ato final (que corresponde ao contrato de assassinato em que Valérie é o alvo), segue, em aparência, o contrato que vemos ao primeiro ato do filme, de modo que o  objetivo de Melville é justamente criar um falso espelho, a partir da mimesis, e reforçar o caráter cíclico da vida de Costello. Mais uma vez ele volta para a oficina em que troca a placa do carro e para o clube onde tudo começou. Mais uma vez a arma é empunhada e até o último momento acredita-se que ele só não cumpriu seu contrato por um acontecimento alheio (o aparecimento dos policiais). Entretanto, o final guarda a revelação final: sua arma nunca teve balas, ou seja, ele foi ao clube, para morrer. Não deixa de ser extremamente trágico que o primeiro ato significativo de livre arbítrio (não carregar a pistola) daquele homem seja justamente aquele que, conscientemente, lhe condena à morte. No fim, em um filme no qual a falta de liberdade se reflete tanto a partir de uma mimese corporal de gestos, a libertação só pode vir com a abdicação deste plano. Costello viveu inconscientemente como homem preso e morreu (ou, neste caso, começou a viver) conscientemente enquanto espírito livre.

Topo ▲