Peréio, Eu Te Odeio!

Peréio, Eu Te Odeio!

Panorâmico e pessoal, mítico documentário aborda trajetória de um dos maiores atores do cinema brasileiro

Igor Nolasco - 14 de outubro de 2023

Vinte e três anos se passaram desde que o cartunista e cineasta Allan Sieber começou a trabalhar em um documentário sobre o irreverente e controverso ator Paulo César Peréio, e doze anos desde que um trailer para o projeto foi divulgado. Ao longo de todo esse tempo, Peréio, Eu Te Odeio! adquiriu status de mito, de filme perdido, nunca finalizado ou mesmo nunca realizado de fato — havia quem considerasse o longa, que chegou a ser comentado em entrevistas dadas pelo ator a programas de televisão, algo como uma brincadeira ou uma lenda urbana. No entanto, há alguns meses, uma página dedicada a Peréio, Eu Te Odeio! foi aberta em uma plataforma de financiamento coletivo, visando arrecadar fundos para finalizar o filme e promover sua pré-estreia na edição de 2023 do Festival do Rio. Depois de uma produção conturbada e um lançamento tantas vezes adiado, o aguardado documentário de fato viu a luz do dia no último domingo, dia 08/10, em sua primeira exibição pública.

A versão do longa que chega ao público conta com direção assinada por Sieber e Tasso Dourado, que – conforme comentado pelo próprio, na apresentação da sessão – se ofereceu a entrar na empreitada como montador em 2019 e acabou assumindo papel criativo decisivo para a reformulação de Peréio, Eu Te Odeio!. Com mais de duas décadas separando as primeiras filmagens rodadas por Sieber e a pré-estreia no Festival do Rio, muita coisa mudou. Peréio, Eu Te Odeio! tornou-se, pra além de um documentário sobre Paulo César Peréio, uma espécie de dispositivo, um “filme sobre o filme”, metacomentário acerca da empreitada quixotesca de Sieber em sua tentativa de tocar o projeto ao longo dos anos, com diversos fracassos e retomadas que passaram pelas próprias frustrações do cineasta e também, claro, pelo caráter imprevisível, rebelde e relapso do objeto que este escolheu retratar.

Ainda que a montagem elíptica e o ritmo frenético de Sieber e Dourado desde o início se preocupem em estabelecer ao espectador a trajetória de Peréio enquanto ator, os cineastas notáveis com quem trabalhou, os filmes importantes de que participou e os grandes papéis que interpretou, desde a sequência de abertura — apresentada como uma espécie de teaser do que vem a seguir — fica bem claro o objetivo dos realizadores em falar sobretudo da “persona” Peréio: sua figura pública notoriamente desleixada, palavruda, ébria, implicante e mulherenga, que granjeia para si diversos outros adjetivos ainda mais espinhosos nos testemunhos dados pelos diversos entrevistados que depõem ao documentário. Entre eles estão atores, diretores, empresários, amigos, inimigos, ex-esposas, filhos e toda a sorte (ou azar) de pessoas que, de uma forma ou de outra, já tiveram alguma dificuldade em lidar com Peréio em suas vidas.

A ideia inicial esboçada por Sieber, que pode ser atestada desde seu título, era a de reunir o maior número de pessoas possível para espinafrar o ator, em entrevistas alternadas com sequências que mostram o cotidiano do mesmo. Nesse sentido, o diretor e cartunista beneficia-se de uma relação profissional transformada em intimidade e convivência construídas com Peréio ao longo de anos. Todo esse processo é direta e amplamente comentado por Sieber no filme, sendo de certa forma o fio condutor da narrativa proposta pelo documentário — nesse sentido, a versão final de Peréio, Eu Te Odeio! acaba sendo marcadamente pessoal. Mesmo que a história conjunta de Sieber e Peréio, relação de amor e ódio, mostre-se interessante e funcione enquanto força motriz para impor a um longa com histórico de produção tão complicado certa rigidez estrutural, o que realmente brilha em Peréio, Eu Te Odeio! são os valiosíssimos depoimentos.

Talvez por ser Paulo César Peréio um dos atores com maior quilometragem profissional na história do cinema brasileiro, participando de mais de uma centena de produções e cruzando o caminho de virtualmente quase todos os atores, diretores e trabalhadores do audiovisual de maior expressão nos últimos cinquenta anos, quase todo mundo tem alguma “história com o Peréio”. O caráter anedótico dessas falas é convidativo ao riso, e amplia a construção da mitologia em torno da figura pública folclórica em que Paulo César Peréio veio se transformando com o passar dos anos. A prosa de Hugo Carvana, Stepan Nercessian, Maitê Proença, Cissa Guimarães e tantos outros colegas, conhecidos, amigos e desafetos de Peréio ao longo da hora e meia de minutagem do documentário, além de ser recheada de desventuras na noite e das sinucas de bico em que o ator sempre fez questão de envolver todos a seu redor, o insere no contexto maior da história da cinematografia nacional, fazendo com que o longa de Sieber e Dourado, nesse sentido, adquira também um caráter panorâmico; este é reforçado quando o idealizador do projeto, por meio de uma narração em off, explana certa cronologia da vida e da carreira de Peréio, trazendo ao espectador fatos pouco conhecidos ou eventos célebres em que este estivera envolvido: de um acidente de carro debilitante à prisão pelo não pagamento de pensão alimentícia; da devoção ao irmão mais velho que lhe moldou a persona pública ao sumiço e autoexílio em um idílico município onde sequer havia agência bancária; da burlesca candidatura a vereador à voluntária mudança, já chegando aos oitenta anos, ao Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro. Sobretudo em relação ao presente de seu objeto, em tomadas rodadas em 2022, Peréio, Eu Te Odeio! assume completamente sua faceta de “filme-sobre-o-filme”, com os realizadores buscando o ator em um esforço consciente de retomar o projeto tantas vezes abandonado e, por fim, finalizá-lo.

Apesar do tom (em muito atrelado à estética e à energia punk-rock de Sieber, de sua produtora, seus cartuns e seus filmes), do título e dos depoimentos em geral pouquíssimo lisonjeiros sobre o ator (que, claro, fazem parte da brincadeira), Peréio, Eu Te Odeio! é uma carta de amor confessa a Paulo César Peréio. Vê-lo envelhecido, fazendo a barba de manhã, nu, em sua casa no Retiro dos Artistas, comove invariavelmente o espectador que possua algum apreço por um dos atores mais emblemáticos da história de nosso cinema. As imagens de Dourado e Sieber adentrando sua atual morada e abordando-o para retomar as filmagens, apenas para encontrá-lo na cama, cabelos e barba raspados, evocam um tipo de reflexão sobre o envelhecimento e a mortalidade de figuras icônicas que vem, por exemplo, sendo elaborada por Clint Eastwood, enquanto ator e cineasta, desde pelo menos Gran Torino, e sobretudo em projetos mais tardios, como A Mula Cry Macho. A justaposição de planos retirados dos filmes onde Peréio atuou, nos anos 1960 e 1970, com as sequências mais recentes capturadas pelos realizadores do documentário, mostra-se uma homenagem sincera e muitas vezes tocante.

O longa, pelo que aborda e por ser o que é, gera natural curiosidade a qualquer espectador mais interessado por cinema brasileiro; sobretudo a todos os que, em algum momento dos últimos vinte e tantos anos, assistiram ao trailer há tanto tempo divulgado e já se pegaram pensando se aquele filme algum dia chegaria aos cinemas — nesse sentido, é quase um It’s All True, onde o charme e a vivacidade de Orson Welles dão lugar às cusparadas no chão e ao estilo despojado e cool do velho e desbocado Peréio, tão amado e odiado. Peréio, Eu Te Odeio! é um tributo que, apesar da clara demonstração de carinho ao personagem-título, vai na contramão do convencional e não se preocupa em adulá-lo e em oferecer uma versão chapa-branca e higienizada de sua história. Algo raro, de fato, no cinema mundial e sobretudo no brasileiro, ainda mais quando o “homenageado” e sua família estão envolvidos no projeto. Uma atitude louvável, em um filme que – torçamos – pode firmar-se como um bom precedente.

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