Rainhas do Crime

Rainhas do Crime

Derrapa em todos os seus esforços

Matheus Fiore - 8 de agosto de 2019

Não é raro vermos discussões sobre a moral de um filme em contraste com sua proposta estética, no sentido de que, mesmo que uma obra tenha boas intenções, ela pode ser pessimamente executada ou até mesmo contraditória na relação entre sua forma e seu conteúdo. Tal discrepância pode ser bem resumida pelo ditado “de boas intenções, o inferno está cheio”. Infelizmente, “Rainhas do Crime”, longa-metragem de estréia da americana Andrea Berloff, é justamente um caso do tipo. A “dramédia” que se propõe a acompanhar o empoderamento de três mulheres antes subjugadas por seus maridos incorre em uma lista tão grande de defeitos que, pondo de lado as frases motivacionais edificantes, resta apenas um filme… Chato.

Kathy (Melissa McCarthy), Ruby (Tiffany Haddish) e Claire (Elisabeth Moss) têm suas vidas viradas do avesso quando seus maridos, os chefes de uma família de mafiosos de Hell’s Kitchen, bairro de Nova Iorque, são presos. Após perceberem que é impossível se manterem com o pouco dinheiro dado pelo negócio da família, o trio de mulheres decide ele mesmo gerir o mercado, e, no caminho, lidam com as barreiras existentes em uma sociedade patriarcal extremamente machista. A partir desse cenário, Berloff alterna entre três ideias principais: as cenas “girl power” em que as personagens conquistam seu espaço, o drama das mulheres que tentam sobreviver em um mundo que não as aceita em posição de poder e o humor proveniente de situações esporádicas e piadinhas.

O problema é que nada funciona apropriadamente em “Rainhas do Crime”. Tanto Berloff quanto o montador Christopher Tellefsen parecem não encontrar um tom para a narrativa. A montagem mantém um modelo de cortes que expurga qualquer dramaticidade de momentos importantes. Uma morte importante, por exemplo, acontece em uma cena que surpreende o público e dura em torno de 10 segundos e, pior, não traz praticamente nenhuma consequência emocional. Todo o filme parece estar sendo levado no piloto automático, em cenas em que o público pode perceber a intenção dramática da obra, mas apenas pelo fato de o roteiro sugerir isso, e não pelo fato de Berloff imprimir algum tom nessas passagens.

Essa montagem, que pouco explora as possibilidades espaciais da mise-en-scene e parece existir apenas para cortar e conectar uma cena a outra, acaba conferindo um tom televisivo à narrativa de “Rainhas do Crime”. Não satisfeito em ter esse ritmo truncado, o longa ainda peca por colocar seu trio protagonista em situações de poder sem que antes haja uma construção que justifique isso. A impressão que passa é que, com exceção de Claire, as protagonistas se tornaram poderosas porque… Porque sim, e acabou. São figuras que da noite para o dia apresentam todo o know-how da máfia, sendo que o primeiro ato sempre cimentou que elas eram postas de lado quando os negócios da família entravam em pauta.

Para que haja o justo empoderamento, há de se ter, primeiro, um caminho que mostre os esforços das personagens para chegar onde almejam chegar. O curioso é que não só esse caminho não é construído, como até mesmo as atuações surgem como um ponto negativo que dificulta para o público a visualização de pessoas normais se tornando chefes da máfia do dia para a noite. Melissa McCarthy, por exemplo, que vem de uma sequência de trabalhos elogiados – como “Poderia Me Perdoar?” – parece presa a uma expressão de medo e fragilidade que nos impede de notar qualquer transformação ou amadurecimento na personagem. Do começo ao fim, Kathy, sua personagem, parece uma figura indefesa e deslocada no mundo do crime, apesar de o roteiro claramente tentar sugerir que Kathy se tornou alguém imponente.

Ao fim, a ideia que se tem é que “Rainhas do Crime” parece um filme construído ao redor das frases motivacionais e empoderadoras proferidas pelo trio protagonista quando este tem sua força questionada. É pouco para um longa que reúne tantos nomes de talento. Aliás, não só pouco, é insuficiente, já que nem mesmo na proposta de fazer da narrativa um carrossel de lacração, Berloff consegue imprimir alguma personalidade ou sequer aprofundar suas personagens e a trajetória. É triste constatar que, ao fim de “Rainhas do Crime”, a impressão que temos é a de que vimos um episódio de meio de temporada de uma série ruim, e que nunca veremos os outros doze capítulos dessa temporada. Uma obra cheia de boas intenções, mas, de boas intenções, o inferno já está cheio.

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