Dois personagens encontram-se em um quarto de hotel, esperando que a rebelião que tomou as ruas da cidade se acalme para que possam voltar aos seus lares. Há uma televisão no fundo do quadro, exibindo o seriado Dragnet, famoso programa de rádio e televisão dos anos 60 que retrata a perigosa rotina da força policial de Los Angeles. Um dos jovens desliga a televisão enquanto presta atenção aos sons externos ao apartamento. É neste momento que a ideia de Kathryn Bigelow fica exposta, de forma elegante e inteligente: Detroit em Rebelião, novo filme da premiada cineasta americana, é o outro lado da moeda de Dragnet.
Assim como o popular programa, Detroit também traz a rotina da força policial de uma cidade americana. Desta vez, sob o escopo das vítimas dessa força policial: a população negra de Detroit. Baseado em um conflito real, o longa acompanha o início da rebelião que ocorreu em Detroit em 1967. Utilizando o primeiro ato para introduzir o contexto da batalha, Detroit em Rebelião transforma-se, a partir de seu segundo ato, em um verdadeiro terror psicológico, acompanhando o caso de um grupo de jovens negros que foi feito de refém por um grupo policial que estava em busca de um rebelde armado.
Bigelow cria, de maneira orgânica, a tensão e a urgência necessárias para um momento tão conturbado: a câmera, sempre à mão, é agitada – se não por sua movimentação de eixo, pelos constantes zoom in e zoom out -, o que joga o espectador no caótico mundo da Detroit em 1967, uma cidade a ponto de implodir, tanto psicológica quanto fisicamente. A montagem, que imprime um ritmo insano graças à alternância entre situações ocorrendo simultaneamente, também é elemento crucial para transformar o cenário em um caldeirão.
Detroit não visa a simplesmente reconstruir historicamente o conflito que ocorreu em Detroit entre 23 e 28 de julho de 1967: subvertendo as expectativas de quem aguardava por um filme que dissecasse o evento, Bielow faz o recorte de apenas um pequeno mas impactante da rebelião. Para isso, então, a obra introduz diversos grupos: o núcleo policial que antagoniza a obra, liderado pelo irresponsável policial Philip; o policial negro, chamado Dismukes, que busca apaziguar a situação; e os jovens negros, incluindo os amigos Larry e Fred.
Antes de unir os personagens, a obra é precisa por apresentar os três sentimentos que dominarão a tortura protagonizada pelos policiais brancos: com Philip, vemos o racismo latente (que escala para declarado) e a agressividade institucionalizada na força policial; com Dismukes, vemos o oficial negro que busca manter a ordem e ajudar seus “irmãos de alma” (termo que, na projeção os próprios cidadãos de Detroit utilizam para se referir a outros negros); com Larry, Fred e os outros hóspedes do hotel, temos a fragilidade e impotência das vítimas. Com isso, somos capazes de ver tanto os dois pontos de vista da abordagem policial quanto os dois pontos de vista dos “civis” presentes na situação.
Mesmo que não explore a violência – uma escolha que se prova acertada por manter o terror acima do horror -, Bigelow constantemente trava sua câmera nos jovens negros que são torturados. Com o uso de close-ups e planos detalhe nos rostos e mãos dos personagens, que passam boa parte do filme virados contra a parede, Detroit consegue transmitir ao espectador o impacto psicológico da situação pela qual os negros passam nas mãos de um sistema tradicionalmente racista e segregador.
Se toda a brutalidade dos acontecimentos e as viscerais atuações – com destaque para a naturalidade com que John Boyega se mostra impotente e amedrontado apenas com seu olhar – já impactam por si, Bigelow ainda insere vídeos e fotografias entre uma cena e outra, tanto da rebelião quanto do caso do hotel. A escolha se mostra eficiente por dois motivos: martelar a todo momento que toda a barbárie presenciada é real, e variar a forma de seu filme, que passeia de um drama biográfico, quando traz o impacto pessoal dos acontecimentos na vida dos personagens, ao terror da tortura e, finalmente, flertando com o documental, trazendo inclusive reportagens de jornal alinhadas ao julgamento dos responsáveis pelo ocorrido.
Com tanta riqueza cinematográfica, Detroit prova-se bem-sucedido ao expor a ferida do ódio racial para seu público. Como o enquadramento, que, corte a corte, varia de um plano aberto para um close-up no rosto de um dos negros interrogados no final do filme, mostrando a escala da situação, que termina em um tom muito mais agudo do que começa, já que, como vemos no filme, o racismo nem sempre se limita a um xingamento, mostrando-se intrínseco a uma forma de pensar, que pode, aos poucos, escalar para a violência extrema, já que é, até hoje, institucionalizado.
Abordando um tema tão espinhoso, que até hoje se revela como não só uma das piores manchas da história da América, como um estigma da humanidade, Bigelow não faz questão de amaciar a situação para seu espectador. Ciente de que, em sua maioria, o público que verá Detroit no cinema é composto por brancos, até seu espectador é criticado, como quando um personagem olha para a câmera enquanto se recorda do interrogatório policial até que, quando as palavras “não olhe para mim, vire seu rosto” são mencionadas, o rapaz desvia o olhar e passa a encarar os cantos do plano.
Claro que Detroit não está simplesmente julgando qualquer caucasiano que assista ao filme como se fosse tão cruel quanto os policiais. Mas, ao longo da projeção, há figuras, como as jovens vividas por Hannah Murray e Kaitlyn Dever, que, mesmo não violentando os negros, tornam-se antagonistas pela omissão. Detroit, então, funciona tanto para expor uma situação desumana e covarde como para mostrar como o racismo tem várias faces – às vezes, nenhuma – mostrando como o silêncio pode fazer do inocente, um cúmplice. Ao fazer tudo isso sob uma incrível variação de tons, Detroit torna-se um dos mais especiais filmes de 2017.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2017.