Homem-Aranha 3

Homem-Aranha 3

A crise particular de Sam Raimi

Gabriel Luna - 14 de dezembro de 2021

No início de Homem-Aranha 3 vemos o teioso balançar entre os prédios de Nova York pelas lentes da característica câmera de Sam Raimi. Enquanto as acrobacias são mostradas em primeiro plano, a câmera se afasta aos poucos, revelando que a imagem estava sendo exibida em um painel no meio da Times Square. A câmera nos mostra Peter Parker (Tobey Maguire) admirando os feitos de seu alter ego heroico – logo, percebe-se como ele está deslumbrado por uma visão midiática dele mesmo. As revistas estampam a cara do Aranha como grande ícone da cidade, todos o veneram como salvador e protetor da população. Peter, um simples rapaz que morou a vida toda no Queens, está fascinado com a fama carregada pela máscara. Os primeiros minutos do fechamento da trilogia idealizada por Raimi parecem renegar toda a humildade do personagem apresentada nos primeiros filmes. Se no primeiro nosso herói aparecia correndo atrás do ônibus, e no segundo precisava se virar entre suas duas realidades para manter o emprego, o que levou Raimi a mudar sua abordagem para algo tão superficial? O motivo do Homem-Aranha ser admirado por tantas pessoas se fundamenta no espelhamento do público com a parte humana do personagem. Precisar pagar aluguel, ter emprego, manter relacionamentos. São conflitos fora do mundo heroico que geram uma empatia pelo personagem.

Raimi enxerga seu personagem da mesma forma que o mercado: um material construído sob uma ótica do impacto visual, da ação pela ação. O herói é apenas um cara (boneco de CGI) disparando teias no céu. Quando Peter avisa para as crianças que o vídeo irá passar de novo e as mesmas dizem não estar interessadas, é quase como se Raimi olhasse para seu personagem e refletisse esse lado comercial, a disposição de um produto. Em Homem-Aranha 2, o letreiro tem recapitulações do primeiro filme pelas artes de Alex Ross, famoso ilustrador de quadrinhos. Era o cinema sendo referenciado pela arte que o inspirou. Já no terceiro, as imagens que formam os créditos vêm de cenas dos próprios filmes. Pode-se dizer que isso faz parte do fechamento – terminar por onde começou -, mas essa mudança demonstra como o universo cinematográfico do cabeça de teia estava muito acima do material fonte. Não precisava mais se ater às histórias. Sobra para Raimi fazer uma coisa com seu filme: transformá-lo em um verdadeiro espetáculo.

O palco em questão é a devida Nova York. Cercadas por produções da Broadway – lugar de inúmeras peças renomadas e reconhecidas mundialmente -, a cidade nunca fora explorada neste lado cultural em seus outros dois filmes. Existia certo distanciamento do vislumbre nova iorquino. Até mesmo quando Mary Jane (Kirsten Dunst) atuava em suas apresentações, o local aparecia pouco atraente, tanto para o público, quanto para os personagens (a cena em que Bruce Campbell barra Peter da entrada). Raimi resolve assumir a identidade artística da cidade em uma demonstração de domínio entre cinema, teatro e musical — esse que tem seu auge na cena do bar de Jazz – totalmente inspirada na quebra de espaço/tempo dos musicais. Seu conflito surge a partir do próprio teatro, colocando Peter, M.J. e Harry (James Franco) no mesmo ambiente dentro de um contexto bem novelesco. A mudança do melodrama dos espaços para momentos marcados por atuações mais expressivas implica como Raimi quer deixar claro que estamos vendo uma cena. No que recorre a uma encenação mais destacada, o diretor apresenta a mentira da narrativa e expõe como tudo nasce da representação. Essa mesma representação é usada para simular momentos icônicos dentro de uma lógica apática com os eventos. Salvar Gwen Stacy (Bryce Dallas Howard) do alto do prédio remete ao salvamento de Mary Jane, assim como a recompensa vinda por meio de um beijo. Enquanto no primeiro filme o ato trazia o clímax romântico, aqui o beijo acontece por uma vontade do público. Até a figura da personagem é tratada como certo produto – sua verdadeira introdução acontece durante um ensaio fotográfico para uma revista. Raimi cerca seus personagens de um mundo de aparatos, os transforma em artefatos guiados pelo exibicionismo.

Com a mudança na personalidade de Peter, fica para Mary Jane fazer o resgate da aproximação com o público. Dá para fazer uma relação entre o próprio diretor e a situação da personagem, onde ambos estão sofrendo por não se adequarem às diretrizes do “show”. Não é M.J. que se ilude com as palmas ao sair pela porta de trás, mas sim, Raimi — sua criação é maior do que ele e, naquele momento, não existe “o Homem-Aranha de Sam Raimi”, existe o “blockbuster do Homem-Aranha”. Na condição de desapego com o personagem, ridicularizá-lo parece ser o caminho. A crise demandada pelo terceiro filme surge como seu principal elemento cômico pelos momentos do “Aranha emo” esbanjando seu estilo pelas ruas de Manhattan. Filmes como Homem de Ferro 3 adentram na psique de seus personagens em uma espécie de reformulação categórica demandada pelo fechamento do arco. Como Raimi já tinha desenvolvido essa questão dentro de seu antecessor, a piada metalinguística com a mídia buscando destaque, alegoricamente inserida no herói vulgarizado, me parece bem mais interessante. Em vez de evidenciar os conflitos internos de seu personagem, os comentários se voltam para um olhar crítico envelopado de provocações aos fãs.

É interessante como a fase cômica gera tanto ódio nos mais fervorosos fãs do personagem, quando a mesma oferece tantos apontamentos que nunca passaram por qualquer tipo de revisão. O fato de Peter usar de seus poderes como vantagem para lucrar com fotos do Aranha sempre foi levado como emprego secundário, mas a disputa com Eddie Brock (Topher Grace) revela o quão antiético sua prática pode ser – Peter está roubando a possível vaga de um fotógrafo/jornalista mais competente, justamente por ser o Homem-Aranha. Isso parte também de uma perspectiva bastante curiosa que Raimi traça entre seus três vilões e suas posições como inimigos a serem derrotados.

Harry tem sua inocência devolvida quando bate a cabeça e perde a memória. A tentativa falha de ser seu pai só serve para trazê-lo para o estágio inicial da trilogia, causando sua morte e redenção. Venom (Eddie), apesar de ter suas motivações, é muito mais uma consequência das ações de Peter (que indiretamente causa sua transformação) e a essência vilanesca extravagante ressalta sua participação como mais um vilão genérico. Já toda subjetividade trabalhada nos vilões Duende Verde e Dr. Octopus, surgem no desenvolvimento do Homem Areia (Thomas Haden Church) e sua procura pela liberdade. Por ser inserido na história como possível “verdadeiro” assassino do Tio Ben, a todo momento somos induzidos a construir uma imagem irreal do personagem. O imaginário de Peter complementa essa percepção guiada pelos flashbacks, mas o que é mostrado é um homem sofrendo por sua condição, precisando roubar bancos para pagar os caríssimos tratamentos médicos de sua filha em um Estados Unidos pré-crise de 2008.

As atitudes de Peter, mesmo antes de sofrer a transformação, já denotam comportamentos descaracterizados que relacionam a seu estado problemático. Um dos exemplos é o momento que Mary Jane o visita em seu apartamento e a sede de vingança pelo homem que matou o seu tio o impede de conversar com sua namorada. Existe uma certa sensação psicótica em Parker de ficar esperando o momento de atacar. Pode não parecer, mas o Aranha aparece bem mais como um vilão.

Como as coisas precisam voltar para os eixos, o final emplaca o grande combate levantado pelas mais 2h de duração. Particularmente, gosto como Raimi usa desse fechamento para elevar ainda mais seus posicionamentos sobre o grande espetáculo do cinema. O público, agora presente e acompanhando toda a sequência final, reage às explosões, grita em conjunto quando sente a ameaça se aproximando, não deles, mas do Homem-Aranha, e tudo passa a ser a grande conclusão épica. Assim como J.J Jameson (J.K. Simons) paga 100 dólares por uma câmera analógica para ter as fotos registradas, o espectador paga para ver a próxima aventura do Aranha sem pestanejar, acreditando que será tão impactante quanto o anterior. Serve como uma amostra do que se tornaria o cinema de quadrinhos com os filmes da Marvel Studios arrecadando cada vez mais com seus lançamentos formulados.

Para não se desencantar completamente, Raimi encerra sua trilogia voltando para onde começou: “essa é uma história sobre uma garota”. Embarcando num dos finais mais agridoces das adaptações de quadrinhos, Raimi nos relembra os pequenos detalhes. A mão de Peter encontrando a de Mary Jane, um momento sutil, recordando de onde veio sua paixão para contar esta história, do que nos faz se importar com esses personagens e se relacionar com eles, do que nos faz sentir, mesmo com tantos desafios extraordinários, humanos.

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