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Mulher-Maravilha

Mulher-Maravilha

Gustavo Pereira - 30 de maio de 2017

Criada pelo quadrinista e psicólogo William Moulton Marston nos anos de 1940, a Mulher-Maravilha foi a primeira (e, até onde minha lembrança alcança, a única) protagonista feminina de quadrinhos “original”. Batgirl, Supergirl e Mulher-Aranha, dentre outras, são derivações de heróis masculinos. Mesmo Sue Storm, a Mulher Invisível do Quarteto Fantástico, vive à sombra de seu marido, Reed “Senhor Fantástico” Richards. Some-se a isso a direção de Patty Jenkins, primeira mulher a dirigir um filme com orçamento acima dos 100 milhões de dólares, e temos em Mulher-Maravilha uma produção cheia de expectativa. Um fracasso em um filme protagonizado por uma mulher, com direção feminina, seria o pretexto perfeito para a internet levantar a tampa de seu bueiro e deixar o esgoto do preconceito correndo a céu aberto. Não é o caso, mas também não ficará marcado como um filme de vanguarda, ou mesmo questionador. É um belo blockbuster. E só.

A história por trás da foto

Quem assistiu a Batman vs Superman (leia nossa crítica aqui) irá se lembrar da foto que Bruce Wayne encontra nos arquivos de Lex Luthor, na qual Diana Prince tem lugar de destaque numa operação durante a Primeira Guerra Mundial. Mulher-Maravilha começa exatamente quando Diana recebe de Bruce a foto original com um recado “espero que um dia você me conte a sua história”. Esse pretexto para que ela coloque a vida em perspectiva é interessante, mas o principal motivo de estar lá é evitar confusão do espectador, que a viu no presente e está prestes a vê-la em um filme no passado. Gratuito, mas não compromete: só mostra a insegurança geral de Hollywood em relação à capacidade cognitiva de quem vai ao cinema.

Mulher-Maravilha é um filme bonito. Entenda “bonito” por “filme que usa recursos técnicos para transmitir informações e plasticamente atrativo”. Themyscira, a Ilha Paraíso onde vivem as amazonas, foi filmada em quatro locações da Itália. Um ambiente puro, harmônico e seguro, refletido em cores vivas, de matizes primárias, saturadas e brilhantes. Nos mares de Palinuro, azuis para Caribe nenhum botar defeito, é virtualmente impossível filmar tomadas que não sejam estonteantes. Quando Diana abandona seu recanto para ir com Steve Trevor (Chris Pine) até Londres, as cores vão para o outro extremo, neutras, frias e opacas, como o comparativo abaixo elucida:

A jovem Diana com sua mãe (acima) e a chegada à Londres da Primeira Guerra (abaixo)

Entre os extremos, uma transição inteligente: a chegada de Trevor indica insegurança e um diálogo dele com Diana se dá numa caverna (tons de cinza), tendo os dois partido da ilha das amazonas à noite (ausência de luz). O figurino de Mulher-Maravilha também é muito competente e merece destaque. Ainda em Themyscira, cada amazona usa uma roupa de acordo com sua posição dentro da hierarquia: as guerreiras lideradas pela general Antíope (Robin Wright) se vestem de marrom; a princesa Diana, de dourado; enquanto a  rainha Hipólita mistura as duas cores, o marrom sendo mais claro. Ela já foi uma guerreira, mas isso faz parte de seu passado.

Já no “mundo dos homens”, o uniforme da Mulher-Maravilha se destaca pelas cores vivas (azul e vermelho), dando à personagem a aura de divindade que merece. Ajuda o fato de Jenkins saber filmar cenas de ação que a colocam acima dos demais: planos contra-zenitais, movimentos de câmera alternantes entre harmônico e caótico, além da própria disposição de elementos em cena. Outro aspecto fundamental para que a credibilidade do filme é a não-sexualização da personagem. Jenkins consegue filmar partes do corpo de Gal Gadot para dar ênfase à sua perfeição sem transformá-la em objeto. E Gadot, tão criticada quando anunciada para Batman vs Superman, mais uma vez empresta à sua personagem um tom bélico e régio. Ela é, inquestionavelmente, uma guerreira semi-deusa.

O 3D do filme é competente quando dá profundidade de campo aos quadros (“jogar coisas na cara” é muito anos 2000 para ainda ser utilizado), mas obriga Jenkins a colocar os atores sempre muito grandes na tela, de forma que “descolem” do fundo. Vejo essa escolha com ressalvas, principalmente quando Os belos dias de Aranjuez mostrou ser possível dar profundidade de campo sem um referencial saltando à vista. Também é questionável a escolha claramente inspirada em 300 (Zack Snyder escreveu a primeira versão do argumento) de sequências de ação em slow motion. A partir da terceira, perde parte do impacto desejado.

Indefensáveis mesmo são as escolhas de trilha do inglês Rupert Gregson-Williams. Não há um momento de respiro entre as cenas, todas são carregadas de ideias sonoras genéricas, que praticamente pegam na mão do público para lhe dizer se deve ficar encantado, excitado ou triste. Não é uma trilha de preenchimento, ela realmente tenta chamar a atenção para si o tempo todo. O grande momento sonoro de Mulher-Maravilha já existia: o tema da personagem, composto por Hans Zimmer e Junkie XL.

Apesar de citar problemáticas contemporâneas, principalmente as que se referem à equidade de direitos, o roteiro vai apenas na superfície. Ao apostar no discurso defendemos-a-causa-mas-não-somos-panfletários, Mulher-Maravilha não se compromete com nada abertamente, deixando suas mensagens nas entrelinhas. Apesar de uma vilã mulher (a Doutora Veneno, interpretada por Elena Anaya), ela não tem o mesmo destaque da protagonista. Etta (Lucy Davis), a secretária de Steve, serve exclusivamente para alívio cômico. É possível afirmar que Diana só alcança o respeito e a admiração dos homens pelos grandes feitos no front. Ela é melhor do que eles, mas não precisou se superar para isso, pois sempre foi. E nenhuma mulher da história vê nela um espelho para alcançar os próprios objetivos. Há um certo afastamento neste aspecto.

O filme segue uma toada de blockbuster tradicional, com o grupo principal (a clássica equipe de desajustados que, por motivos diversos, se reúne e salva o dia) tentando interceptar um laboratório de armas químicas onde Diana tem certeza que vai encontrar Ares, o Deus da Guerra. O embate entre os dois guarda uma reviravolta que o torna mais profundo na análise do que é o bem e o mal dentro da natureza humana. Mas é exatamente após isso, no clímax, que Mulher-Maravilha derrapa: uma luta final óbvia, efeitos pouco convincentes e um diálogo, apresentado primeiramente sem som, é reapresentado menos de cinco minutos depois, finalmente revelando o teor da conversa.

Mesmo acertando ao mostrar uma guerra agridoce, onde todos saem derrotados, a mensagem final de Mulher-Maravilha é um tanto quanto piegas. Mesmo assim, é acima da média para o gênero (incluindo os lançamentos recentes da Marvel) e o melhor filme da nova fase da DC no cinema, por muito. Vale o ingresso.

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