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Três Anúncios Para Um Crime

Três Anúncios Para Um Crime

Matheus Fiore - 6 de fevereiro de 2018

Em “Três Anúncios Para Um Crime”, o cineasta Martin McDonagh opta pelo uso de planos estáticos, construindo as cenas com um estilo simples, baseado em planos e contra-planos. Há uma cena, porém, que destoa muito do restante da obra: um personagem, filmado em um belo plano-sequência, invade um lugar e espanca uma pessoa. Nessa cena, reside o código cinematográfico que dá o caráter do restante da projeção. Ali, o homem que agride está despejando seu ódio por conta de problemas profissionais. O que é espancado, porém, não tem culpa direta. O filme usa esse momento como referência, “Três Anúncios” é uma obra sobre o ódio, e sobre como os habitantes daquela pequena cidade no interior do Missouri lidam com o sentimento de impotência diante de inimigos “sem rosto”.

No foco da trama está Mildred Hayes (Frances McDormand), mulher que teve sua filha morta e cobra das autoridades uma solução para o caso. Cansada de não obter respostas, Mildred instala três outdoors na beira da estrada, cobrando uma atitude da força policial liderada por Bill Willoughby (Woody Harrelson). McDonagh conta sua história com uma mistura de drama e comédia já vista no interessante “Na Mira do Chefe”, de 2008. Há o drama das situações por que passam os personagens, mas todos lidam com seus dilemas de forma cômica, tornando o filme leve.

Como dito no primeiro parágrafo, “Três Anúncios” não é um filme de visual arrojado. McDonagh muda a cadência rítmica ou utiliza uma câmera mais móvel apenas quando seus personagens extravasam a raiva. Na maior parte da projeção, o longa tem uma câmera segura, quase conservadora, com linguagem que, em certo ponto, beira o arcaico, mas que funciona para potencializar as atuações. A força de “Três Anúncios” está no que seus personagens sentem e exprimem. A obra traz uma cidade onde os habitantes têm consciência da falibilidade da lei – e, talvez por isso, McDonagh nunca dê peso jurídico aos crimes cometidos pelos personagens. Há, portanto, uma melancolia constante e um ódio latente.

A melancolia surge de várias formas, e uma delas é a música. Carter Burwell compõe uma trilha multi-instrumental, guiada quase sempre por dedilhados simples de violão – remetendo diretamente aos westerns –, ou por um piano. Em ambos os casos, a música que acompanha a projeção sempre é construída com foco em escalas de tons menores, que “ilustram” o enclausuramento dos sentimentos dos personagens.

Já o ódio, principal sentimento da narrativa, surge por meio das cores. Aliás, de uma cor específica: o vermelho. Mildred, por exemplo, só utiliza vermelho no começo do filme, justamente quando põe os outdoors na beira da estrada, ilustrando seu ato como uma atitude baseada na ira. A cor está presente em toda a cidade. Além de ela estar nos próprios anúncios que dão nome à obra, repare-se como até a mesa de sinuca do mais popular bar da região é vermelha. A fotografia também acompanha essa escolha, utilizando constantemente uma iluminação vermelha sobre os rostos dos atores, contando que há, na cidade de Ebbing, um ódio reprimido em todos os seus personagens.

Se o ódio é sugerido pela cor – vale lembrar que o vermelho, no audiovisual, constantemente está ligado a perigo -, o roteiro é responsável por desenvolver as nuances de cada um dos personagens. Nisso, porém, há alguns problemas. O arco de Dixon, o policial caipira vivido por Sam Rockwell, por exemplo, tem transformações dependentes de elementos muito frágeis. É inverossímil que apenas uma carta mude a visão do personagem em relação a um assunto, como acontece no segundo ato. A atuação de Rockwell, porém, é importante para conferir inocência e fragilidade emocional ao personagem, o que não o inocenta de ser um policial notoriamente racista, mas dá mais camadas a essa personalidade.

O domínio absoluto do vermelho tanto no design de produção quanto na fotografia explicitam o uso da cor como linguagem em "Três Anúncios".

O domínio absoluto do vermelho tanto no design de produção quanto na fotografia explicitam o uso da cor como linguagem em “Três Anúncios”.

Lembrando um pouco o cinema dos irmãos Coen em filmes como “Fargo”, “Três Anúncios” também flerta com viradas narrativas a todo momento. McDonagh traz variações à trama, dificultando cada vez mais que o público adivinhe o que está por vir e também dando aprofundamento aos personagens. Nunca, porém, o filme abraça os absurdos, mantendo uma estrutura conservadora. O eixo sempre é mantido.

Por outro lado, o diretor é feliz ao utilizar a relação ação-reação para estabelecer uma ambientação desesperançosa na cidade. Crimes em geral nunca recebem punição por vias legais, apenas morais, o que escancara a falência do sistema judiciário de Ebbing. Essa construção permite dois elementos importantes para a trama: o primeiro é a implacabilidade da protagonista, que, ciente da inoperância do sistema, tenta alcançar seus objetivos de forma independente; o segundo é a forma como alguns dos próprios policiais têm seus arcos desconstruídos a ponto de tomarem atitudes drásticas – para o bem e para o mal.

Martin McDonagh dirige Frances McDormand e Peter Dinklage em cena de "Três Anúncios Para Um Crime".

Martin McDonagh dirige Frances McDormand e Peter Dinklage em cena de “Três Anúncios Para Um Crime”.

Com o cenário de falência “estatal” estabelecido, “Três Anúncios” ainda consegue fazer a normatização da violência ser um traço verossímil da cidade. As reações calmas e sem espanto diante da brutalidade e da agressividade alheia sugerem que os cidadãos de Ebbing têm a hostilidade no cotidiano – e aí entra novamente a importância do mencionado uso da cor vermelha por toda a narrativa.

“Três Anúncios Para Um Crime” é um filme que finge ser corajoso, mas que sempre suaviza a parte “suja” com piadas que excedem seu espaço. A obra busca impactar, mas nunca permite que o drama seja dominante por sempre fazer este retorno ao cômico. Esse humor também é problemático, uma vez que há uma uniformidade em sua aplicação – todos os personagens mantém uma mesma veia cômica. Como resultado, o único indivíduo realmente humanizado acaba sendo James, o anão vivido por Peter Dinklage, que expõe seus sentimentos e traz alguma sensibilidade diante de um elenco homogeneamente amargurado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Outro elemento que McDonagh escolhe não trabalhar é a tensão racial presente no interior do Missouri. Sendo os Estados Unidos um país com histórico de abuso de autoridade e violência por parte da polícia contra a comunidade negra, o assunto é sempre jogado de para escanteio. O diretor, aliás, mantém o público com uma visão muito restrita do que ocorre no universo de Ebbing. Os três outdoors de Mildred, por exemplo, só são revelados quando um dos policiais passa por eles – uma escolha que se justifica para criar suspense acerca do conteúdo dos anúncios.

“Três Anúncios” tem suas complicações no texto e encontra enorme dificuldade em se desapegar do humor para embarcar em um tom mais sombrio – a narrativa gradualmente ganha contornos mais obscuros e exige maior dramaticidade -, mas nem isso é capaz de tirar o brilho de um longa que tem uma ambientação construída com tanto carinho. Martin McDonagh faz de seu novo filme uma obra cruel por não oferecer saídas fáceis para seus personagens. Não há possibilidade de caminhos simples e felizes em um mundo estruturalmente falho, como é o de “Três Anúncios Para Um Crime”. Para aqueles personagens desgastados e destruídos, resta achar um lugar onde possam depositar seu ódio.

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