Retrato de uma Jovem em Chamas

Retrato de uma Jovem em Chamas

A arte como registro da memória, como afeto e como um escape para um passado afetuoso

Matheus Fiore - 17 de janeiro de 2020

Levar mitos ao cinema não é uma tarefa das mais simples. Na história do cinema, o artista que talvez melhor tenha feito essa transição tenha sido o armênio Sergei Parajanov, que, em filmes como “Sombras dos Ancestrais Esquecidos”, “A Cor da Romã” e “A Lenda da Fortaleza Suram”, transformou em narrativa audiovisual mitos milenares, como o de Adão e Eva, e outros importantíssimos para culturas específicas, como histórias que são parte da fundação mitológica e cultural de sociedades como a da Geórgia. No caso de “Retrato de uma Jovem em Chamas”, o mito abordado é o de Eurídice e Orfeu.  Citada nominalmente ao longo da narrativa, a lenda conta a história da personagem grega que Orfeu tenta resgatar do inferno. Em “Retrato”, acompanhamos a história de uma pintora que vai até uma ilha isolada do mundo, onde deve pintar o retrato de uma jovem para que a obra seja enviada a seu futuro marido. O problema é que, por não aprovar o próprio casamento, que foi arranjado por sua mãe, a jovem recusa-se a posar, dificultando o trabalho da pintora.

O Orfeu de “Retrato” é a própria pintora – ambos artistas, já que Orfeu carregava sua lira. Havendo essa substituição, “Retrato de uma Jovem em Chamas” é um filme exclusivamente feminino. A masculinidade, aqui, é o Hades como um todo. O mundo dominado pelo homem se torna um inferno, do qual nem Eurídice, nem Orfeu parecem ser capazes de escapar. Até mesmo na remota ilha onde vivem, as moças ainda agem na narrativa de acordo com os mandos das figuras masculinas – enquanto Hèloïse aguarda por seu casamento, Marianne está lá por demanda do próprio noivo da jovem.

Ocupando o papel da artista dentro da própria obra, é até difícil não imaginar Marianne como uma representação de Sciamma e seu desejo por reescrever e resgatar personagens femininas historicamente reprimidas – no caso de Eurídice, a figura grega acaba condenada ao inferno por um deslize do próprio Orfeu. Essa visão se faz muito presente na forma como Sciamma constrói visualmente a narrativa, utilizando planos-detalhe que não só acompanham os olhares da pintora para sua musa, como também uma certa investigação da cineasta para com suas personagens. É interessante ainda o fato de que “Retrato de uma Jovem em Chamas” dá aos olhares trocados pelas personagens a mesma atenção que dá às linhas mais importantes do roteiro, por entender que a relação entre aquelas mulheres se constrói tanto pelo que expressam verbalmente, quanto pelo que sentem e não podem conceber.

“Retrato de uma Jovem em Chamas” começa de forma etérea, com uma pequena introdução, ambientada no presente, que utiliza a memória da pintora protagonista como gancho para retornar ao passado. Esse regresso já confere ao filme uma aura de suspensão temporal, já que a memória, por não ser algo que ocorre no tempo presente, é necessariamente romantizada, tratada de forma semelhante a um sonho, uma imaginação. Nesse aspecto, é interessante observar como a chegada de Marianne à ilha é tratada quase como um nascimento e uma construção de mundo. Antes de conhecermos o castelo bem iluminado onde a Eurídice do filme reside, vemos a protagonista percorrer corredores sombrios, pouco iluminados, e repousar nua diante de uma fogueira, como se aquele cosmo tivesse sido recém-formado.

O grande conflito reside sobre os sentimentos da dupla principal. Marianne, ao passo que avança na criação de sua obra, se apaixona pela musa que a inspira, mesmo ciente de que a finalização de seu dever implica o fim dos encontros com Hèloïse. Já esta vive um conflito mais existencial, que parte de seu ímpeto por existir para além das pretensões de sua mãe e seu noivo. O que confere o tom trágico às personagens é a ciência de que, para além dos sonhos que permeiam os imaginários de Marianne e Hèloïse, as duas mulheres estão fadadas a exercer as funções impostas pela tradição e, portanto, jamais realizarão seus próprios objetivos. Como na cena em que Hèloïse encara as violentas ondas que se chocam contra a ilha onde vive, aquela situação opressora não parece ter contorno, e é o destino da jovem repetir o mito de Eurídice, condenada a arder no inferno, e nem mesmo todo o amor de Orfeu é capaz de livrá-la desse destino.

Mais do que um filme de reconstrução de mito e investigação da feminilidade, “Retrato de uma Jovem em Chamas” exerce papel quase de registro e denúncia históricos. Sciamma apresenta uma visão que foge dos caminhos mais simples, e, remontando à lenda de Orfeu e Eurídice, retrata um relacionamento fadado ao trágico pela noção de que as peças desse tabuleiro estão à mercê de uma força social maior. Ao menos haverá, para aquelas moças, a memória de um passado idílico que elas poderão revisitar e, por ele, escapar, mesmo que por um breve momento, do inferno que é a condição social a elas imposta. O próprio exercício de criar “Retrato de uma Jovem em Chamas” parece ser, para Sciamma, um exercício de fortalecimento da memória. No caso de Sciamma, a memória é abordada através da criação de uma arte do tempo, o cinema, enquanto para Marianne e Hèloïse, os retratos feitos durante a estadia da dupla na ilha. Retratos que funcionam não só pela memória afetiva, mas por serem recortes afetuosos de espaço congelados no tempo, que não podem ser afetados por presente e futuro.

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