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Torre das Donzelas

Torre das Donzelas

Wallace Andrioli - 16 de setembro de 2018

Não resta dúvida da importância de um filme como “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira. Ao mesmo tempo que rememora episódios de brutalidade da – hoje recuperada e reexaltada por alguns – ditadura militar brasileira, o faz destacando a luta de um grupo de guerrilheiras para sobreviver ao arbítrio, num momento em que justamente as mulheres lideram a oposição a um candidato à presidência fortemente vinculado à memória positiva desse regime autoritário. Além disso, Lira encontra a ex-presidenta Dilma Rousseff num momento inspirado, analisando com grande lucidez sua própria passagem pela ala feminina do Presídio Tiradentes (apelidada “torre das donzelas”) e as relações estabelecidas com companheiras de cela. Não há em cena qualquer resquício da imagem preconceituosa construída sobre Dilma, de uma mulher de discurso desarticulado e pensamento confuso.

Lira mantém seu foco não nas violências cometidas contra suas entrevistadas, mas nas formas que elas encontraram para, na prisão, reconstruir um cotidiano digno, marcado por dor, claro, mas também por alegria e trabalho. Diferentemente de boa parte dos documentários sobre o período da ditadura militar, “Torre das Donzelas” não recorre a imagens de arquivo ou a entrevistas com especialistas. Interessam apenas aquelas mulheres, sua voz e experiências. Mas o filme vai além das clássicas talking heads tanto ao introduzir alguns momentos de reconstituição dramática, com atrizes profissionais, quanto ao apostar numa estratégia de encenação com as próprias entrevistadas, levando-as a um espaço que emula a tal “torre das donzelas”. São estratégias arriscadas.

A primeira, curiosamente, funciona, já que a diretora evita o mero docudrama, com as intérpretes vivendo personagens específicas. Esses momentos existem apenas para evocar uma atmosfera criada dentro da prisão. São quase etéreos. Já a segunda, apesar de não ser um problema em si, levanta a dúvida sobre sua real efetividade. Será que as personagens de “Torre das Donzelas” não dariam os mesmos depoimentos num ambiente neutro? Lira não consegue criar a impressão de que o espaço que construiu de fato interfere e direciona o que é falado em seu filme. É como se ela usasse de uma estratégia não tão convencional para, no fim das contas, realizar um documentário absolutamente convencional.

Mas a limitação mais clara de “Torre das Donzelas” está justamente na escolha por fugir de qualquer tensão nessa relação com a memória da ditadura. A narrativa segue num crescendo de mitificação daquelas mulheres que apaga qualquer resquício de dor no ato de lembrar ou de contradição em falas a respeito de uma vitória simbólica delas contra as autoridades militares. Um bom contra-exemplo, nesse sentido, é “Que Bom Te Ver Viva” (1989), de Lúcia Murat, que aborda tema muito próximo (mulheres perseguidas, presas e torturadas pelo regime nas décadas de 1960 e 1970) mas jamais esconde as tensões existentes entre presente (de liberdade e busca por reconstrução de uma vida social normal) e passado (de violência). Muito se fala da importância de lembrar os tempos da ditadura para que ela nunca mais se repita, mas vale questionar até que ponto uma relação mitificada e laudatória com a memória, como a que se dá em “Torre das Donzelas”, realmente contribui para isso. Afinal, refletir com realismo e profundidade sobre as derrotas sofridas (elas foram muitas, naquele tempo e hoje) talvez seja um pressuposto fundamental para o combate concreto ao retorno do arbítrio.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para o 51º Festival de Brasília. Para ler outros textos de nossa cobertura, clique aqui.

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